Um Foco sobre a Literatura Brasileira Contemporânea

TEXTO RETIRADO DO PORTAL  igler 

 Tatiana Carlotti  (igler@ig.com)

 Prosa Morena

Jessier Quirino
Editora Bagaço

Empurra a cancela, Zé, abre o curral da verdade, pra mostrar pra mocidade, como é que vive um Zé…” (p.15)

Empurrar essa cancela significa beber no rico universo da poesia nordestina. Entrar em suas casas, ouvir a sua gente, temer e admirar a sua natureza, mas, sobretudo, encontrar uma rica poesia, muitas vezes ignorada e invalidada à custa da ignorância cultural que ainda hoje se perpetua no nosso país. No entanto, depois de aberta, é impossível fechar essa cancela e esquecer a riqueza da linguagem e da profundidade presentes na escrita nordestina.

Jessier Quirino é um arquiteto que descobriu-se poeta. Nascido em Campina Grande, Paraíba, desde a sua estréia, em 1996, nos mostra que conhece bem a “poesia matuta” e honra a tradição deixada por Patativa do Assaré e Catulo da Paixão Cearense. Sua obra mais recente, “Política de Pé de Muro”, lançada em 2002, foi antecedida pela obra “Prosa Morena”.

Publicada em 2001, “Prosa Morena” vem acompanhada por um CD com 15 poemas do livro, cantados e recitados pelo próprio autor, que recupera o elo perdido entre poesia e música, voz e repente, tradição oral e escrita, num belíssimo trabalho que espelha com fidelidade o viver nordestino.

Ligado à terra e aos seus valores, o matuto que emerge das páginas de “Prosa Morena” tem sua linguagem popular preservada e enriquecida. O trabalho do poeta é ágil tanto no trato das palavras “importadas” de outras regiões, quanto no das criadas sob a tradição do repente.

Expressão de um viver que só a ele pertence, o universo do matuto comporta, além da religiosidade e sabedoria populares, a necessidade de se expressar por meio dos causos. O autor nos dá a deixa: “...Sois um Zé Qualquer do mato, provador de amargor, tu sois urro, sois maciço, devoto do Padre Ciço, sois matuto rezador, o Zé Qualquer em pessoa, Marido de Chica Boa, o teu verdadeiro amor…“(Zé Qualquer e Chica Boa, p.17)

Esse universo é apresentado com muito humor, mas sem perder a dimensão profunda dos sentimentos que assolam o homem ameaçado pela seca e pela corrupção. A crítica política dá o tom, e o que surge cômico se torna reflexão.

O que vemos é a denúncia de uma estrutura corrupta erguida durante séculos e inserida na mentalidade do fazer político, seja na história cheia de percalços e tropeções do prefeito que utiliza a morte da esposa para se promover, seja na ambientação sarcástica de um comício feito num beco estreito: “Anunciar a chegança, do corrupto ganhador, pedir o “V” da vitória, dos dedo dos eleitor, e mandar que os vira-lata, do bojo da passeata, traga o home no andor“. (Comício de Beco Estreito, p.28)

O olhar se volta para a natureza, que se manifesta com beleza e lirismo suficientes para torná-la uma, com seus bichos, homens e frutos, embalando e transformando o próprio ser matuto: “quando a lua se faz de tapioca, com a goma e o coco a me banhar, sinto meu coração corcovear, por estar no abandono abandonado, e sozinho que nem boi de arado, me avermelho que é ver flor de quipá…”(Lua de Tapioca, p.41)

No entanto, a mesma natureza que invade o coração do homem e transborda seus sentimentos, é capaz de secar suas palavras e fazê-lo ajoelhar-se em desespero: “…que não se veja um sertanejo se ajoelhando, pedindo chuva ante Cristo sonolento, que não se veja solo rachado e sedento, e sem sustento as rezes se ajoelhando…”(Além das preces, p.120)

E como milagre, à revelia desse “Cristo sonolento”, a fé brota e semeia em terra fecunda, fazendo o homem, em sua tristeza, agradecer: “…Benzó-Deus pro carro de boi que chia, imprimindo seu nome em chão batido, pro silêncio mais alto que o ruído, feito um templo amuado e mal-com-deus, Benzó-Deus pro marrom dos olhos teus, faiscando um olhar enternecido.”(Coisas para se dizer Benzó-Deus, p.20)

Mas engana-se quem imagina que é de tristeza que vive o sertanejo. A alegria se apresenta na linguagem dotada de humor e musicalidade. A lealdade de compadres que prezam a força da palavra. O amor feito do cotidiano, de uma malícia faceira, quase ingênua, mas cheia de duplicidades. A sensualidade inata de corpos que se misturam aos frutos, exposta num “quase sem querer”: “… é aquele enganchamento, de perna de boca e mão, aquele agrado de coxa, é aquela alisação, e se acaso ela der sopa, descascadinha de roupa, Virge Maria…! Sei não!” (O imposto do Cupido, p.39)

Além disso, o autor desenvolve um interessante diálogo entre Norte e Sul, hoje e ontem, natural e industrial. Para isso se apropria de artigos de supermercado, referências do cinema, da música, do vestuário, relidos sob a ótica do matuto.

Um dos exemplos desse diálogo é a bela versão de Águas de Março, onde o poeta traz à tona as diferenças regionais do Brasil, transformando a música de Tom Jobim num lamento nordestino: “é pau é pedra é o fim do caminho, é um metro é uma légua é um pobre burrinho, é um caco de vida é a vida é o sol, é a dor é a morte vindo com o arrebol, é galho de jurema é um pé de poeira, cai já, bambeia é do boi a caveira…” (Secas de Março, p.89)

Proeza de quem sabe lidar com as palavras.
Benzó-Deus!